16.7.16

cefaleia (iv)

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Quem pode pensar em tais insignificâncias se o trabalho espera nos currais, na estufa, nos estábulos? Leonor e Chango já se ouvem lá fora e, quando saímos com os termómetros e as tinas para o banho, atiram-se ambos ao trabalho como se quisessem cansar-se bem depressa, preparando o descanso da tarde. Sabemos isso muito bem, por isso alegra-nos ter saúde para podermos cumprir cada tarefa. Enquanto for assim e não aparecerem as cefaleias, podemos continuar. Agora é Fevereiro, em Maio estarão as mancúspias vendidas e nós a salvo por todo o Inverno. Ainda se pode continuar.

As mancúspias distraem-nos muito, em parte porque são cheias de sagacidade e malevolência, em parte porque a sua criação é um trabalho subtil, necessitando uma exactidão incessante e minuciosa. Não é preciso enumerar, mas isto é um exemplo: um de nós tira as mancúspias fêmeas das jaulas aquecidas - são 6:30 da manhã - e reúne-as no curral do pasto seco. Deixa-as retouçar vinte minutos, enquanto o outro tira as crias dos cacifos numerados, onde cada uma tem a sua história clínica, verifica rapidamente a temperatua rectal, repõe nos cacifos as que excedem os 37,1º e, por uma caleira de folha, leva as restantes a reunirem-se às mães, para a lactação.

Talvez seja este o momento mais belo da manhã, comove-nos o alvoroço das pequenas mancúspias e das mães, o seu rumorejante falatório sustido. Apoiados na grade do curral esquecemo-nos da figura do meio-dia que se aproxima, da dura tarde inadiável. Por instantes, temos um certo medo de olhar para o chão do curral - um quadro Onosmodium marcadíssimo -, mas passa e a luz salva-nos do sintoma complementar, da cefaleia, que aumenta com a escuridão.

(cont)

Julio Cortazar, in Bestiário