2.7.16

Coração de Cão (ii)




Não vale a pena aprender a ler quando se consegue cheirar a carne à distância. Então quando se vive em Moscovo, e se tem dois dedos de testa, aprende-se quase sem querer, mesmo não indo à escola. Dos 40 mil cães moscovitas, só um ou dois, completamente idiotas, não conseguem unir as letras da palavra “chouriço”. Charik começou a aprender através das cores. Tinha ele apenas quatro meses quando, por toda a cidade, apareceram placas azuis e verdes com a inscrição “VC – venda de carne”. O que, repita-se, era completamente desnecessário. A carne sente-se pelo cheiro, ninguém precisa de inscrições. 

Certo dia, houve uma pequena confusão: Charik estava sem olfacto por causa do fumo da gasolina dos carros e, orientando-se pela cor azul do cartaz, sem receio algum, entrou no armazém de material eléctrico dos irmãos Golubizner, na rua Miasnitskaia, em vez de entrar no talho. Aí, o infeliz cão levou com o cabo eléctrico, que é pior do que levar com um chicote de cocheiro. Pode considerar-se este momento histórico como o início da aprendizagem de Charik. De volta ao passeio, Charik apercebeu-se de que “azul” nem sempre significava “carne”. Com a cauda entre as pernas, e uivando de dor, o cão lembrou-se que, nos talhos, a primeira letra era dourada ou cor de laranja, parecida com uma lua – “C”. 

A partir daí, tudo lhe correu melhor. O “E” aprendeu na Central de Peixe, na esquina da rua Mokhovaia (tendo aprendido não com o início da palavra, mas com o fim, que era o lado por onde se aproximava da loja, pois havia sempre um polícia por baixo do placar, onde começava a palavra).

[Coração de Cão, Mikhaíl Bulgákov]